quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A MP 984 e o potencial de partidas transmitidas

A Medida Provisória nº 984 (já abordada aqui) segue em discussão no Congresso Nacional, tendo sido recentemente (14/08/2020) prorrogada pelo prazo limite de mais 60 dias pelo seu Presidente, o Senador David Alcolumbre. Caso não se chegue a um consenso ao final desse prazo, a MP caducará deixando um rastro de complexas relações jurídicas estabelecidas durante a sua validade.

O ponto mais polêmico dessa MP diz respeito à alteração dos direitos de transmissão dos eventos desportivos, que passariam a ser titularizados apenas pelo clube mandante e não mais pelo clube mandante e visitante conjuntamente, como era até então. A polêmica gira em torno de saber se a nova dinâmica favorecerá ou prejudicará os clubes, sobretudo sob a perspectiva da igualdade econômica entre eles.

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Crédito: Mantos do Futebol

Uma análise que pode auxiliar nesse debate é a do reflexo de cada um dos cenários no potencial número de partidas transmitidas pelos eventuais contratantes. Ou seja, quantas partidas uma emissora com os direitos de transmissão de um determinado número de clubes poderá transmitir em cada um dos modelos. Na sequência, procuramos fazer essa análise tendo por base o Campeonato Brasileiro das Séries A ou B, onde o formato de competição é o mesmo: 20 clubes se enfrentam em jogos de ida e volta.

No Gráfico 1 temos o comportamento do potencial de partidas transmitidas no Modelo anterior à MP nº 984. Como podemos observar na linha azul, o potencial de transmissão cresce exponencialmente conforme o número de clubes que se detêm os direitos de transmissão, só sendo possível transmitir as 380 partidas do campeonato caso se tenha contratos com os 20 clubes. Consequentemente, o potencial de partidas de novas emissoras (linha amarela) decresce exponencialmente conforme já exista alguma emissora dominante em determinada competição.

O que chama mais atenção, no entanto, é que em qualquer cenário onde haja mais de uma emissora detentora de direitos de transmissão haverá partidas perdidas (linha vermelha), no sentido de que nem uma nem outra poderá transmitir o evento (a não ser que haja um acordo entre elas). A situação se agrava ao se considerar que em um cenário onde cada emissora detivesse contratos com 10 clubes - o que sob determinada perspectiva poderia ser considerada uma situação de competição perfeita - o número de partidas perdidas seria de 200 - o mais alto possível. Isso porque, cada emissora deteria o contrato de ambos os clubes em apenas 90 partidas, havendo, portanto, apenas 180 partidas transmissíveis. 

Caso se considere o acréscimo de mais emissoras, o número de partidas perdidas aumentaria ainda mais, chegando à casa de 300 na hipótese de 4 emissoras cada uma com o contrato de 5 clubes. 

O modelo definido na MP nº 984 possui uma dinâmica completamente diferente. Conforme se observa na linha azul do Gráfico 2 o comportamento do potencial de partidas a ser transmitido por uma emissora é linear em relação ao número de clubes. Isso faz com que não haja partidas perdidas com a entrada de novas emissoras (linha vermelha). Ou seja, é possível que haja 20 emissoras cada uma com o direito de transmitir as 19 partidas em que o clube que detêm o contrato é mandante.

 

O Gráfico 3 traz uma a comparação de um aspecto econômico essencial de cada um dos modelos: o acréscimo de partidas proveniente da assinatura com um novo clube. Conforme se nota, no modelo anterior à MP nº 984 (linha laranja) essa variável comportas-se como uma progressão aritmética em que cada novo clube contratado acrescenta 2 partidas além do número de partidas acrescentado na contratação anterior. Assim, os direitos de transmissão do 1º clube não possibilitam a transmissão de nenhuma partida, do 2º clube 2 partidas, do 3º clube mais 4 partidas e assim por diante até a contratação do vigésimo clube que acrescentará 38 partidas ao potencial de transmissão da emissora. 

Tal dinâmica faz com que o poder de barganha de cada clube varie conforme o momento que celebrar o contrato com a emissora. Isso porque, enquanto o 10º clube acrescentará apenas 18 partidas ao portfólio da emissora, o 20º acrescentará 38. Por outro lado, esse 20º clube não terá alternativa a não ser celebrar o contrato com a emissora que já detêm os direitos de transmissão dos outros 19 clubes da competição ou então não negociá-los. Situação parecida ocorreu nesse ano com o Flamengo em relação ao Campeonato Carioca. 

Na verdade o próprio poder de barganha das emissoras varia muito conforme a quantidade de clubes de que já dispõem o direito de transmissão. Imagine uma emissora que já detêm os direitos de transmissão de 15 clubes e outra que detêm de 4 clubes. Aquela agregará 30 partidas caso assine com o clube faltante (seu 16º clube), enquanto esta agregará apenas 8 (seu 5º clube). Evidentemente a diluição do custo será muito maior no primeiro caso do que no segundo.

Em relação ao modelo da MP nº 984 (linha azul) o Gráfico 3 apenas demonstra aquilo que já havia se constatado no Gráfico 2: a celebração de contrato com qualquer clube agregará 19 partidas ao portfólio de qualquer emissora. 

Como se vê, a nossa análise limitou-se, sobretudo, ao aspecto descritivo das consequências de cada modelo ao potencial de partidas transmitidas. Isso porque, é preciso agregar considerações de outras naturezas para se concluir com maior grau de segurança qual modelo favorece mais, por exemplo, o valor do produto consistente na transmissão de um determinado campeonato ou então a igualdade econômica entre os clubes. 

É bem verdade que o modelo anterior à MP nº 984 mostra-se potencialmente lesivo ao valor dos direitos de transmissão do campeonato como um todo, uma vez que a inserção de concorrência necessariamente implicará na perda de partidas potencialmente transmissíveis e aumentará o poder de barganha de emissoras dominantes em face dos clubes. Por outro lado, é preciso considerar que ele estimula a negociação conjunta pela parte dos clubes, evitando-se assim que estejam sujeitos a diferentes poderes de barganha decorrentes da ordem da celebração dos contratos, o que tende a favorecer o equilíbrio econômico. 

Em relação ao modelo da MP nº 984, nota-se que ele facilita a concorrência entre emissoras e iguala o poder de barganha dos clubes no que diz respeito ao acréscimo de partidas potencialmente transmissíveis. No entanto, tende a incentivar a negociação separada dos clubes com as emissoras, o que é um incentivo a maior desigualdade econômica entre eles.
  
Além disso, é preciso considerar se a disseminação dos direitos de transmissão entre diversas emissoras, facilitada nesse modelo da MP nº 984, não prejudicará a promoção do campeonato como um todo, afetando negativamente seu valor enquanto produto. Isso pode ocorrer, pois a partir do momento que diversas emissoras detenham os direitos para transmitir partidas de clubes isolados, é possível que elas não tenham mais o mesmo interesse em agregar valor ao campeonato através, por exemplo, da sua cobertura jornalística, chamadas durante a programação, ações promocionais etc, concentrando-se apenas nos clubes com que mantenham contrato.



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